Dois jovens soldados que fizeram parte da coluna militar saída da antiga Escola Prática de Cavalaria de Santarém recordam esses dias de revolução. Testemunhos na primeira pessoa de quem participou na operação ‘Fim de Regime’
Francisco Sousa Mendes e António Henrique Conceição estavam do mesmo lado da barricada no dia 25 de Abril de 1974. Não se conheciam, mas integraram a coluna militar que saiu da Escola Prática de Cavalaria (EPC) de Santarém. Liderada por Salgueiro Maia, foi a mais poderosa de todas as forças que participaram na queda do Estado Novo.
Em Abril de 1974, Francisco de Sousa Mendes tinha 21 anos e encontrava-se em Santarém há apenas um mês. Transferido de Mafra, frequentava o Curso de Oficiais Milicianos (COM), destinado a quem possuísse o antigo 7º ano do liceu, equivalente ao actual 11º ano de escolaridade.
Aos 29 anos, Salgueiro Maia era comandante do 2º Esquadrão de Instrução da EPC, responsável pelo Curso Geral de Milicianos (CGM), de onde sairiam os futuros oficiais e sargentos milicianos, ao abrigo do então Serviço Militar Obrigatório (SMO).
Com apenas três meses de tropa, Sousa Mendes, só tomou conhecimento dos preparativos para o golpe “em cima da hora”, e de que iam marchar sobre Lisboa “na própria noite”. Posteriormente, veio a saber que alguns oficiais terão sido contactados com alguma antecedência. “Sei de um alferes que estava para passar à disponibilidade, que tinha vindo de uma comissão em Moçambique, e foi contactado pelo próprio Salgueiro Maia”, para que se mantivesse ao serviço.
Nas primeiras horas do dia 25 de Abril, “apagamos a luz do quarto à uma hora da manhã. 15 minutos depois o cabo miliciano do nosso pelotão acendeu-a, mandou-nos levantar e vestir. Deu-nos cinco minutos para estarmos formados”. Surgiu depois “o nosso alferes que já nos deu umas indicações de que se estava a passar qualquer coisa”, mas “pensávamos que era apenas mais uma instrução nocturna, como era hábito”. Não era. Já se encontravam formados numa das paradas da EPC, quando “apareceu o Salgueiro Maia que nos mandou para um anfiteatro onde nos disse aquele discurso que hoje é célebre e que íamos caminhar sobre Lisboa. Disse-nos aquilo com poucas palavras, não foi muito mais além”.
O discurso de Maia
Perante um anfiteatro de ensonados instruendos em final de recruta, Salgueiro Maia proferiu o discurso que se tornou lendário com o passar dos anos. Chamou a atenção para o facto de que “como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos. De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!”.
Ninguém recuou, todos se voluntariaram, mas foi necessário deixar para trás militares que assegurassem a defesa da unidade revoltosa. A coluna militar liderada por Fernando Salgueiro Maia integrava 245 militares e foi a maior de todas as forças implicadas no golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.
Apanhados de surpresa, “olhamos uns para os outros com uma certa reserva, porque no tempo da outra senhora, e numa unidade militar, dizer que vamos acabar com isto e fazer um golpe de Estado, pensámos que estava a falar de mais”. Apesar disso, “não houve ninguém que dissesse não”, recorda Sousa Mendes.
Depressa se aperceberam que o assunto era sério, sobretudo quando nos “mandaram formar à porta do depósito de armamento para recebermos munições e granadas reais”, quando estavam apenas habituados a utilizar munições destinadas a instrução de recrutas. Levantadas as munições, começou a formar-se uma coluna com carros de combate e com viaturas de transporte de pessoal que saiu por um portão das traseiras do quartel, pouco tempo depois das três horas da madrugada.
Desenrascar e municiar
António Henrique da Conceição, com 23 anos em Abril de 1974, assentara praça em Castelo Branco. Passara por Coimbra antes de ser colocado na EPC, em Santarém, onde se encontrava afecto à enfermaria. Foi nessa condição que viajou para Lisboa, integrado na coluna dirigida por Salgueiro Maia, onde seguiu numa Unimog convertida em ambulância.
Já soldado ‘pronto’, a cumprir o SMO, não teve direito a qualquer discurso por parte dos seus superiores. Estranhou ter-lhe sido negada a saída do quartel, a 24 de Abril, mas desconhecia por completo o motivo por detrás dessa ordem.
Já nas primeiras horas da madrugada de 25 de Abril, foram chamados a reunir. “Não sabíamos o que se estava a passar, só nos informaram que íamos para Lisboa fazer uma revolução. Disseram-nos ‘desenrasquem-se’ e deram-nos ordens para municiarmos as armas” antes de sair do quartel. António recorda que “partimos confiantes”, mas “só em Lisboa é que nos começamos a aperceber onde estávamos metidos”.
Sousa Mendes lembra que “durante o percurso ninguém dizia nada, íamos todos apreensivos porque era uma situação nova, não fazíamos ideia nenhuma do que é que nos esperava”. A viagem decorreu sem sobressaltos. Passaram as portagens, que na altura se encontravam junto a Sacavém, onde “o funcionário ainda tentou cobrar bilhetes”.
Terreiro da revolução
Chegaram a uma Lisboa, praticamente, deserta e dirigiram-se ao Terreiro do Paço, “sempre a andar, não havia semáforos para nós”. O objectivo da coluna saída de Santarém, com o nome de código de ‘Toledo’, era o Terreiro do Paço, onde chegaram por volta das cinco horas da madrugada e ocuparam posições previamente definidas.
“Fui colocado junto ao rio e estivemos ali uma série de horas”, sempre com um olhar atento sobre “uma fragata que se encontrava no Tejo e que não estava ali por acaso. Não sabíamos até que ponto é que iria disparar sobre nós, mas era uma hipótese”, que deu origem a “um ambiente com alguma tensão”. Tratava-se da fragata Almirante Gago Coutinho, um navio de guerra que tomou posição, mas não viria a efectuar qualquer disparo após ter sido informado que se encontrava na mira da artilharia instalada junto da estátua do Cristo-Rei, em Almada, na outra margem do rio Tejo.
Posicionados no Terreiro do Paço ao longo de várias horas, “assistimos a algumas coisas”, mas “não nos apercebemos de nada do que se estava a passar à nossa volta”. Só posteriormente ficariam a par dos acontecimentos que se desenrolaram desde as primeiras horas da manhã na baixa lisboeta.
Disparar em caso de fuga
Para António Henrique a chegada a Lisboa, “foi muito natural, nem havia nenhum movimento”. Estacionada a ambulância numa das extremidades do Terreiro do Paço, presenciou o desenrolar de alguns acontecimentos a uma relativa distância.
Assistiu a Salgueiro Maia dar voz de prisão a um dos oficiais do Regimento de Cavalaria 7, enviado para o local para enfrentar os revoltosos, mas que não ofereceu qualquer resistência quando foi detido. Por ordem directa de Maia, a ambulância passou a servir como local de detenção. “Pediu-nos para que o oficial fosse tratado com toda a dignidade, mas que disparássemos em caso de fuga”.
Com o evoluir da situação, “o ambiente deixou de ser tão tenso”, e “fomos ganhando um pouco de confiança e um maior à vontade” diz Sousa Mendes. Por volta das 11 horas da manhã, as forças da EPC avançam para o Largo do Carmo, após a informação de que o Presidente do Conselho do Estado Novo, Marcelo Caetano e alguns dos seus ministros se encontravam refugiados no interior do quartel da GNR aí instalado.
Subida ao Carmo
Sousa Mendes recorda a entrada num largo “completamente apinhado e cheio de gente”, onde a população se “misturava com os militares”. Aqui, Salgueiro Maia subiu para o cimo de um carro de combate onde, de megafone na mão, apelou repetidamente à rendição dos antigos governantes sem obter qualquer resposta.
Perante a falta de comunicação, Maia deu ordem de fogo, por duas vezes, sobre a fachada do quartel do Carmo. Com a especialidade de atirador de cavalaria, Sousa Mendes, lembra que “alguns do nós subimos para os telhados dos prédios situados em frente e cumprimos com o que nos mandaram”, e abriram fogo de G3 sobre a frontaria do quartel.
O impasse durou horas, e ainda “assistimos a um indivíduo que foi à janela do quartel acenar com um lenço branco”. Após Salgueiro Maia ter entrado no quartel para se encontrar uma solução que levasse os antigos governantes a renderem-se, “apercebemo-nos da chegada do general Spínola”, factor determinante para o desfecho do cerco ao quartel.
Encontrada uma solução, os soldados formaram um cordão em frente da porta de armas do quartel para que os membros do governo “não fossem linchados pela população”. A chaimite ‘Bula’ entrou de marcha atrás no quartel e recolheu os antigos governantes, pelas 19h00, que foram depois escoltados pelos homens da EPC.
Marcelo Caetano, Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros e Moreira Baptista, ministro do Interior, foram conduzidos para o quartel do Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, onde se encontrava montado o posto de comando do Movimento das Forças Armadas (MFA) que coordenou o golpe ao longo do dia.
Presunto com brandy
Em comum, os dois militares lembram a falta de comida sentida ao longo do dia. Sem lhes ter sido fornecida qualquer tipo de alimentação, Sousa Mendes garante “que não levamos nada, não íamos sequer preparados”. Valeu-lhes o apoio de alguns populares “que começaram a aparecer com umas sandes e embalagens de leite”.
Mais tarde, já no Largo do Carmo “apareceu muita gente com muitas sandes” e outros alimentos. António Henrique lembra que, nas imediações do largo, a população partiu a montra de uma mercearia de onde retirou alimentos para dar aos soldados: “a minha primeira comida do dia foi um pão duro, presunto e brandy”, para além de “ter fumado muitos cigarros”.
As únicas vítimas do dia, foram atingidas a tiro por agentes da PIDE/DGS, que dispararam sobre a multidão que se aglomerou junto da sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso, após o cerco ao quartel do Carmo. O tiroteio causou quatro mortos e dezenas de feridos.
A ambulância de António ainda transportou um casal ferido para o Hospital da Estrela. “Soubemos depois que eram namorados, ela tinha ferimentos ligeiros, mas ele tinha, pelo menos, sete impactos de bala espalhados pelo corpo”. Apesar da gravidade dos ferimentos, o homem acabaria por sobreviver, segundo foi informado na altura.
Regresso a casa
Desse dia, os militares recordam “a alegria do povo”, que, desde cedo, mostrou que “estava do nosso lado”, lembra Sousa Mendes. “Sentia-se um alívio muito grande, porque já se adivinhava que o golpe era bem sucedido”, e a revolução triunfara. O ambiente nas ruas de Lisboa “era incrível, as pessoas estavam felizes da vida”, e já toda a gente falava sobre Salazar e o deposto regime do Estado Novo sem quaisquer receios.
Para Francisco de Sousa Mendes, aposentado da função pública, ter participado na destituição do Estado Novo trouxe uma dupla satisfação. Se por um lado, o País deixou de estar sobre uma ditadura que já durava há 48 anos, por outro contribuiu para o derrube de um regime que puniu severamente o seu avô Aristides Sousa Mendes (1885-1954), o cônsul de Portugal em Bordéus, demitido por Salazar, por ter emitido milhares de vistos a refugiados em fuga de uma Europa ocupada durante a II Guerra Mundial. “Senti que estava metido num golpe que ia acabar com um regime que tinha condenado o meu avô. É uma coisa que me orgulha”, frisa.
Os militares da EPC regressaram ao quartel somente no final do dia 26 de Abril. Com o aproximar de Santarém, “começou a surgir muita gente a manifestar o seu apoio” à coluna militar. A entrada na cidade decorreu “muito devagarinho”, tal a multidão que aguardava os militares.
“O povo de Santarém recebeu-nos de braços abertos”, acrescenta António Henrique, barbeiro de profissão, com casa aberta em Almeirim. “Nunca tinha visto tanta gente nas ruas da cidade que cheguei a pensar que era outra revolução”. À distância, recorda este dia como “uma das coisas mais bonitas a que assisti, sem faltas de respeito”, embora se sinta “frustrado por as pessoas não terem sabido assegurar a democracia e o esforço que nós fizemos”, conclui. Carlos Quintino
Texto editado a partir de um artigo originalmente publicado no jornal Correio do Ribatejo, de 20 de Abril de 2012.
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