O historiador escalabitano, José Raimundo Noras, defende a tauromaquia como forma de salvaguardar uma cultura secular
Em nome do touro (ou do toureiro) – defesa desencantada do naco de toiro bravo no Quinzena
“As touradas não podem acabar!” – diz-me, sem rodeios, uma jovem mãe com quem cruzei os destinos na vida. Migrante dos “confins do Ribatejo”, Marina foi comigo pela primeira vez a uma tourada há largos anos. Não viu picarias noite a fora no Campo Emílio Infante da Câmara, nem no CNEMA. Não tentou “pegar a vaca” para ganhar o prémio da noite e a glória do aplauso. Não cresceu nem no mundo tauromáquico, mas fora dele e diz taxativamente: “Sem tourada não há Ribatejo”. Não vou tão longe, mas que os touros eles sim podem fazer o Ribatejo.
A curiosidade de Marina era a mesma que de Korapat Pruekchaikul, amigo tailandês de longa data. Se a primeira se converteu à tauromaquia, o segundo ainda que crítico pela sua educação budista“ vibrou” no calor da emoção num espetáculo taurino há anos na monumental Celestino Graça escrevendo a crónica, que polemiza com este texto. Críticos da violência à grande maioria dos tailandeses não passará pela cabeça “abolir” o Muay Thai, desporto nacional, mas claro já aboliram as lutas de galos, prática ancestral que deixou de ter seguidores entre nós.
Não sou aficionado. De parte a parte, compreendo os argumentos do debate. Fui largos anos sócio da Quercus e membro fundador — com a ribatejana e ilustre bióloga Daniela Alves — da já extinta “Milícia Animal para Portugal e Arquipélagos” (MAPA). Nesses fóruns e mais recentemente com o amigo Samuel Pimenta, discutimos a tauromaquia. Não ignoro a falácia do argumento, para quem, no atual sistema económico e social, sem “festa brava” o “touro bravo” desaparecerá. Alguns líricos poderão criar reservas. Mas quem já vi filmes sobre o agronegócio nota bem que problema não está principalmente nas touradas. Disse no jornal um “apanhador de tubarões”: “eu respeito os animais e a tauromaquia só sustenta a meia dúzia de família”. É falso. Organizei a “Garraiada do Estudantes” na Queima das Fitas e dos ganadeiros, aos emboladeiros, à administração do Coliseu Figueirense aos vendedores de cerveja, aos arrumadores, aos bilheteiros, aos designers, são muitos os que trabalham nas touradas. O argumento continua a ser falacioso, porém se eventualmente a prática terminasse ter-se-ia de compreender que isso iria no imediato fazer perigar o sustento de um grande número de pessoas e não me refiro aos “artistas tauromáquicos” nem aos ganadeiros apenas, naturalmente. Claro, podem sempre fazer outras coisas.
Mutatis mutandis alguns movimentos fazem-me lembrar a célebre parábola de Brecth: “há que mentir pelo comunismo, há que violar pelo comunismo, há que matar pelo comunismo, porém, quando o comunismo colocar em causa o operário há que abandonar o comunismo.” A vida do autor de “Mãe Coragem” cruzou-se com o último período da já longa história das proibições da tourada em Portugal e nos seus Impérios. Na I República houve um debate semelhante ao atual sobre “toda a violência sobre animais”, e em 1919, a lei claramente visava práticas públicas humilhantes dos animais. Essa medida, terá tido curto alcance prático, poucos consideraram que o decreto abrangesse a tourada, ainda que se mencionasse a flagelação pública dos animais. O texto curto da lei destinava-se a regular o uso privado destes. Alguns toureiros chegaram, contudo, a ser presos, tendo orgulho nisso. Ao mesmo tempo, a crise económica preocuparia mais os povos de então, como os de hoje. A lei da I República, trouxe à colação debate antigo, vindo originar durante o Estado Novo proibição expressa de touros de morte e uma instrumentalização nacionalista da “corrida à portuguesa.”
O debate é secular, seguimos um artigo de Bruno Goís (1). De má memória, pela crise dinástica, o “cardeal-rei” D. Henrique I proibiu as touradas, adotando, em 1580, nas “leis portuguesa” a bula de De Salute Gregis, do papa São Pio V (de 1567). A efémera proibição tauromáquica, encontrou adversário internacional no rei português D. Filipe I (Filipe II de Espanha), vigorando apenas até 1585. Já no século XVII, o rei D. José I fica chocado com uma morte de um homem na arena, e ordenou a regulação da tourada. Enquanto príncipe regente, o futuro rei D. João IV, a tourada seria proibida partir do Brasil, em 1809. Ficou mais famoso o decreto de Passos Manuel para quem as touradas habituam “o homem ao crime e à ferocidade”. Carlos Quintino ‘descobriu’ um texto disperso onde Sá da Bandeira se declara antitouradas, uma vez que na opinião de leiga, nem só de tourada vive a tauromaquia. A tourada seria várias vezes proibida no século XIX com fraca capacidade de imposição. Corre o rumor, ainda sem sustentação documental, que terá sido Carlos Relvas amigo de D. Luís a evitar uma proibição definitiva da prática num país que se queria progressista como os nórdicos. Foi a época onde tudo germinou e tempo, que eu saiba, dos primeiros movimentos de defesa dos animais, aos quais, mas tarde o próprio Relvas terá sido sensível.
Sou leigo tauromáquico, mas sei apreciar o prazer estético de uma corrida, tanto no toureio a pé, a cavalo e, sobretudo, como na generalidade dos adeptos não aficionados das pegas. No entanto, a minha costela estruturalista, na esteira de Umberto Eco e Roland Barthes, não vê, de todo no espetáculo tauromáquico a forma superior de linguagem, assim definindo a arte ou a busca desta. No meu modesto entender, a prática touradas está mais próxima da definição de desporto do que de arte, embora as duas não sejam mutuamente exclusivas. Tem uma abertura e um fim de época, regras muito próprias, validação das “jogadas”, um espírito competitivo e esteve durante muito tempo associada outros jogos tauromáquicos e a práticas hípicas.
Nada dá o direito de comparar “actores tauromáquicos” às “mutiladoras de genitais” como fazem os “jihadistas ecológicos”. Não poderão, na mesma moeda, os “jihadistas taurinos”, como Moita Flores, dizer que pessoas como Passos Manuel eram incultas e trogloditas. Eça de Queirós, ao contrário de Ramalhão Ortigão, não era a favor da tourada, de Fernando Pessoa não consta que gostasse de toiros, já José Saramago iniciou-se na literatura com o conto “O Heroísmo Quotidiano”, precisamente sobre uma morte com toiros na lida do campo ribatejano. Urbano Tavares Rodrigues começou a trilhar caminhos como toureiro onde singrou e se destacou, infelizmente, por motivos ideológicos suponho, a “grande afficion” da nossa terra, não lhe prestou grandes manifestações de pesar. O autor da antologia O Mundo do Toureio na literatura portuguesa, bem merecia justa homenagem e republicação da sua obra há muito esgotada, por alguns arautos da bandarilha.
“Em defesa do toureio”, considero que nesta como noutras práticas ancestrais, também está em causa a identidade local que pode gerar diferenças e efetivamente proteger as populações dos interesses vorazes do “capitalismo corporativo cultural” (atualizando o conceito de Slavoj Zizek). A tauromaquia é indiscutivelmente um valor patrimonial material e imaterial a proteger do qual faz parte o próprio touro, mas muito dificilmente será reconhecida pela a UNESCO, no atual satus quo dessa organização. No futuro a curto prazo, sem ganadeiros o destino do toiro bravo é curto e fica nas mãos das “Monsanto” e outras firmas deste mundo global.
Por tudo isso, a tourada é importante, sobretudo, para o naco de toiro do Quinzena. Gosto de comer carne e isso não me torna um assassino. Nesses tempos idos, a política, mesmo radical, não colocava no mesmo nível todo o tipo de vida. Não digo que matar um animal seja inócuo, se a ciência como alguns desejam, permitir que vivamos sem comer animais tanto melhor. Como artista e como historiador de arte custa-me a considerar a tauromaquia uma arte. Reconheço que a violência na arte não pode justificar tudo, mas se a arte extravasa os limites de todas as regras humanas, não pode valer mais, que a vida, vida humana bem entendido. Recusamos arte feita com sacrifícios humanos embora ela possa ter valor estético e/ou artístico.
Por fim, falo da luta contra a iconoclastia tauromáquico, não vamos queimar a história. No mundo da “cultura do cancelamento” há o argumento perigoso de que o Estado não pode financiar touradas por uma questão de gosto e de idiossincrasias. Daí à censura é um passo muito curto. E, hoje em dia, a censura já nem é só feita pelos governos, mas por multinacionais organizadas.
Antes de falecer, bem-haja à sua memória, o Fábio do restaurante “O Melro”, desabafava dos clientes que se ofendiam com quadros de corridas. Na Taberna do Quinzena, como bem sabemos ficam já uns 150 anos de história de memórias que temos de preservar, relacionadas com touradas e não só, mas com tudo o que na verdade insufla a alma ribatejana. É já agora fica o repto para umas comemorações à altura como naco de toiro bravo, da justamente mais afamada taberna da nossa Terra. Haja vinho e saúde, que possa afastar o mal pandémico que nos tolda o juízo. José Raimundo Noras
PS: Texto escrito em 2013 após ida a uma tourada com Marina e Korapat, mencionadas no texto, revisto e corrigido em 2021.
[1] Bruno Goís, “Breve História do Fim das Touradas”, em Esquerda.net, disponível em: https://www.esquerda.net/opiniao/breve-história-do-fim-das-touradas/28994, consultado em 1/09/2013
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